NEWSFARMA 21/05/2025
Em entrevista à News Farma, João Martins, médico neurofisiologista Clínico / neurologista nos hospitais CUF Sintra e CUF Coimbra e na Clínica CUF Leiria, destaca a relevância clínica da NPF e a inovação diagnóstica trazida pelo SUDOSCAN, com destaque para a sua introdução em unidades da rede CUF em Portugal. Leia a entrevista completa.
News Farma (NF) | A neuropatia de pequenas fibras (NPF), resultante de danos às pequenas fibras do sistema nervoso periférico, tem várias causas possíveis, como diabetes, doenças autoimunes, infeções e algumas doenças genéticas. É conhecida a prevalência da NPF em Portugal?
João Martins (JM) | Pela dificuldade inerente, os estudos populacionais sobre este tema são ainda muito limitados mesmo genericamente a nível mundial. Não tenho conhecimento de estudos epidemiológicos em Portugal, concluídos ou em curso, sobre NPF na nossa população. Um dos trabalhos internacionais mais citados sobre este assunto é Europeu: “Incidence and prevalence of small-fiber neuropathy. A survey in the Netherlands”, publicado na Neurology em 2013. Os autores afirmam que, numa região bem definida no sul dos Países Baixos onde decorreu o estudo, a prevalência mínima global é de 52.95 casos/100,000 habitantes. Apesar de uma extrapolação poder ser falível, com base nestes números, poder-se-á inferir que em Portugal poderão existir mais de 5,500 doentes com NPF.
NF | E qual é a incidência estimada da NPF, seja na população geral, seja nos grupos específicos de doentes que padecem das referidas condições associadas?
JM | Naquele mesmo estudo, os autores determinaram uma incidência mínima de 11.73 casos/100,000 habitantes/ano, pelo que, poderão ocorrer mais de 1,200 novos casos de NPF todos os anos em Portugal. A diabetes é, reconhecidamente, a etiologia mais prevalente existindo em cerca de 70% de todos os casos identificados com NPF. Muitas outras etiologias podem cursar com NPF, de entre: doenças auto-imunes (Sjögren, Sarcoidose, Lúpus), genéticas (PAF-TTR, Fabry, Pompe), infecciosas (Hepatite C, VIH, Lyme), défices vitamínicos (B1, B6, B12), disfunção tiroideia, doenças oncológicas e toxicidades várias (incluindo por quimioterapia, antirretrovirais, abuso de álcool) pelo que é difícil quantificar a prevalência/incidência para cada uma destas etiologias. Num número significativo de doentes a causa é multifactorial e noutros é idiopática.
NF | Quais os principais sintomas da NPF? E que razões podem explicar um diagnóstico difícil ou tardio desta condição?
JM | Antes de mais, é necessário esclarecer que a NPF pode ocorrer de forma assintomática e, sobretudo em determinados grupos de doentes em risco, o seu reconhecimento nesta fase seria fundamental para a tomada de atitudes diagnósticas/terapêuticas que evitassem precocemente a progressão do dano nervoso. Os sinais/sintomas clássicos de NPF cursam com grau variável de desconforto distalmente nos membros, incluindo dor neuropática (com sensação de queimadura, picadelas, choque eléctrico), hiperestesia/disestesia ao toque e perda de sensibilidade para estímulos nóxicos/álgicos ou térmicos podendo facilitar feridas e queimaduras. A NPF também pode cursar com disfunção autonómica, incluindo disfunção sudomotora, secura de mucosas (síndromo sicca) e distúrbios geniturinários e/ou gastrointestinais. Uma entidade muitas vezes negligenciada é a Neuropatia Autonómica Cardíaca (frequente em doentes diabéticos com NPF já existente distalmente nos membros) e que pode cursar com risco de vida. A saúde sexual dos doentes com NPF também pode ser afectada através de disfunção erétil, ejaculatória e orgásmica. Penso que a ausência de valorização de determinados destes sintomas por parte da população que não os comunica ao médico, assim como um baixo índice de suspeição para NPF por parte dos profissionais de saúde, agravado pela dificuldade no acesso fácil a um método diagnóstico concreto, levará a que muitos doentes sejam diagnosticados tardiamente ou nunca cheguem mesmo a ser diagnosticados.
NF | Existem outras condições que podem ser confundidas com a NPF? Se sim, como é possível destrinçar?
JM | Sim, o desafio diagnóstico desta disfunção que afeta o sistema nervoso periférico é grande. Porque os sinais e sintomas por vezes são pouco específicos e difíceis de descrever pelo doente ou de caracterizar pelo clínico, podendo confundir-se com patologia orgânica primária do sistema nervoso central, funcional psicossomática, neurocirúrgica/ortopédica, reumatológica, gastrointestinal e/ou geniturinária. É frequente que os doentes recorram a profissionais de múltiplas especialidades médicas antes de serem corretamente diagnosticados. Perante a suspeita de NPF é necessária a realização de uma aturada história clínica e exame físico ao doente, assim como a exclusão das etiologias mais plausíveis, perante o caso clínico em questão, com a realização dos meios complementares de diagnóstico mais pertinentes. A referenciação para avaliação clínica em consulta especializada da Dor e/ou Neurologia – Doenças Neuromusculares poderá ser fundamental.
NF | Como é feito o diagnóstico da NPF? E quais os exames complementares de diagnóstico mais utilizados?
JM | O diagnóstico de neuropatia de pequenas fibras poderá ser efetuado quer pela verificação histológica da perda axonal de pequenas fibras quer pela avaliação da função autonómica do órgão efector ou através da determinação dos limites de deteção sensitiva termoálgica. Existem actualmente vários métodos diagnósticos para NPF com graus variáveis de especificidade, sensibilidade, limitações, exigência técnica e acessibilidade do exame. Alguns são invasivos como a biópsia de nervo Sural e a biópsia de pele, com elevado grau de sensibilidade e especificidade, mas o seu acesso é muito limitado pela necessidade destas exigentes técnicas serem realizadas com equipamentos e recursos humanos altamente especializados. Relativamente aos métodos não-invasivos, os mais relevantes são: Teste Quantitativo do Reflexo Axonal Sudomotor (QSART); Potenciais evocados a Laser (LEP); Testes sensitivos quantitativos (QST); SUDOSCAN- que estão disponíveis em poucas instituições. O diagnóstico de NPF pode também ser efectuado através de questionários clínicos como: Questionário de Inventário de Sintomas de Neuropatia de Pequenas Fibras (SFN-SIQ); Small-Fiber Symptom Survey; Massachusetts General Hospital Neuropathy Exam Tool (MAGNET), Escala de Deterioração de Neuropatia (NIS), Composit Autonomic Symptom Score (COMPASS31) e Autonomic Symptom Profile (ASP).
NF | Recentemente a CUF passou a contar com o SUDOSCAN – Teste Sudomotor Quantitativo? Que tipo de tecnologia é esta e como funciona?
JM | Sim, a rede CUF passou a poder contar com o SUDOSCAN em 3 das suas unidades (Hospital CUF Sintra, Clínica CUF Leiria e Hospital CUF Coimbra), podendo assim ser solicitada a: Avaliação Quantitativa da Função Autonómica Sudomotora. Trata-se de um exame que permite a avaliação simultânea da função sudomotora nos 4 membros, cujo compromisso poderá ser uma das anomalias neurofisiológicas mais precocemente detetáveis na presença de NPF. A tecnologia inovadora do SUDOSCAN permite essa avaliação de forma rápida (3 minutos), objetiva, simples e não-invasiva, quantificando a condutividade eletroquímica da pele (medida em microSiemens) através da transpiração induzida pela aplicação de uma inócua corrente elétrica de baixa voltagem (<4V) que é transmitida pelas placas metálicas do aparelho onde o doente assenta a palma das mãos e a planta dos pés. Essa condutividade é analisada pelo software específico do equipamento e é prontamente criado um relatório com os valores específicos obtidos em cada um dos membros. Esses dados, altamente reprodutíveis, podem ser utilizados em estudos ulteriores, para estudo comparativo da evolução clínica do doente ao longo do tempo.
NF | Quais os critérios para solicitar um teste como o SUDOSCAN?
JM | O SUDOSCAN é um meio complementar de diagnóstico de prescrição médica obrigatória. É útil e poderá ser solicitado a qualquer doente onde possa existir a suspeita clínica de NPF (que apresente graus variáveis de disautonomia, dor neuropática e/ou insensibilidade termoálgica). Também é muito pertinente na avaliação de doentes com diagnóstico já estabelecido de NPF e para controlo evolutivo de múltiplas doenças em que essa possa ser uma característica clínica, sendo que uma das vantagens do SUDOSCAN é precisamente a capacidade de quantificação objetiva da disfunção sudomotora ao longo do tempo. Também poderá ser utilizado para determinação do envolvimento subclínico precoce de patologias em doentes ainda assintomáticos (por exemplo, portadores de mutações genéticas conhecidas).
NF | Como qualifica o impacto desta inovação para diagnóstico atempado e precoce da NPF?
JM | A avaliação da função sudomotora tem sido proposta como index de gravidade quando existe falência autonómica assim como indicador precoce da possibilidade de regeneração nervosa após suspensão de eventual insulto neuropático. Sendo assim, o diagnóstico de NPF, a quantificação objectiva da função sudomotora e a determinação da sua evolução temporal poderá ser crucial para a decisão clínica. A título de exemplo: na diabetes, essa visualização poderá levar à consciencialização do doente com reforço para a necessidade de cumprimento da medicação assim como à do médico para a tomada de alterações terapêuticas e confirmar os seus efeitos ao longo do tempo; nos doentes oncológicos poderá ser muito útil para avaliar precocemente o efeito deletério de determinados esquemas de quimioterapia no sistema nervoso periférico, permitindo a suspensão/alteração atempada do plano terapêutico. De igual forma, permite objetivar o padrão de regeneração nervosa após conclusão desses tratamentos quando tenha já existido insulto com NPF; nos doentes com síndromes dolorosos de difícil gestão, a inferência da existência de NPF para o caso em concreto, permitirá ao médico ter a confirmação da existência de um substrato orgânico para o diagnóstico de dor neuropática, dando-lhe maior segurança para a escalada terapêutica com os fármacos mais apropriados.
NF | Houve formação especial da equipa do Hospital CUF Sintra para a realização deste exame?
JM | O SUDOSCAN é um exame neurofisiológico que terá que ser realizado ou supervisionado diretamente, in loco, por um Neurofisiologista Clínico devidamente formado em instituição idónea e acreditado pela Ordem dos Médicos. Internacionalmente, a questão da formação de quem o executa tem sido alvo de aceso debate uma vez que o SUDOSCAN é tido como um exame operador-independente (cujos valores obtidos nos resultados são automáticos e concretos, sem subjectividade, muito consistentes), rápido, não-invasivo e de muito fácil execução técnica. Nesse sentido, por exemplo nos EUA, existem já associações de diabéticos a defenderem que o SUDOSCAN deveria poder ser executado sem supervisão médica naquelas instituições (devido à crescente falta de recursos médicos especializados) podendo assim este inovador MCDT ficar disponibilizado de forma mais abrangente à sua população-alvo onde a pressão para a sua procura é cada vez maior. No entanto, como acontece com muitos outros MCDT, é fundamental e insubstituível que a análise e interpretação dos resultados seja sempre realizada à luz do caso clínico em concreto, cujas queixas, história clínica, antecedentes e exame físico sejam devidamente colhidos por um médico com experiência em doenças neuromusculares. Acresce que os resultados obtidos podem ser influenciados pelo uso de medicamentos anticolinérgicos ou com grau variável de ação anticolinérgica (existente, por exemplo, em determinados antidepressivos, neurolépticos, anti-histamínicos, anti-espasmódicos) de corrente uso clínico. Os resultados do exame são facilmente fornecidos pelo aparelho, mas o diagnóstico integrado para o doente em concreto tem que ser sempre realizado por um médico neurofisiologista clínico.
NF | Existem grupos de risco que, no seu entender, devem ser rastreados para NPF por via do SUDOSCAN, de forma a precaver o desenvolvimento desta condição?
JM | Este exame deve ser realizado para um número significativo de patologias médicas que possam cursar com NPF. Como disse anteriormente, a existência de NPF pode ser assintomática e o seu diagnóstico precoce (idealmente até nesta fase) permitirá uma atempada tomada de atitudes terapêuticas assim como mudança de hábitos e estilo de vida, com claro benefício em saúde para os nossos doentes. Sou inclusive da opinião de que determinados grupos específicos de doentes em risco (ex.: diabéticos, oncológicos, com determinadas patologias auto-imunes e genéticas) deveriam ter uma avaliação basal por SUDOSCAN ao momento do diagnóstico da sua patologia, que serviria de ponto de partida antes da evolução da doença e da tomada de atitudes terapêuticas.
NF | Quais as principais implicações da NPF na qualidade de vida dos doentes?
JM | Essas implicações são diversas. Por um lado, é necessário abordar as que são determinadas pela própria doença orgânica que cursa com NPF e o tipo de manifestações clínicas com expressão variável em cada doente: disautonómicas (síndromes de hipotensão postural, disfunções geniturinária e gastrointestinal, disfunção sudomotora, neuropatia autonómica cardíaca, disfunção sexual) assim como a dor neuropática e a perda de sensibilidade termoálgica. Por outro lado, é necessário abordar os efeitos causados pelas próprias disfunções orgânicas (muitas vezes graves, perigosos e até potencialmente fatais) e com implicações sérias a nível mental e psicológico, podendo ser altamente incapacitantes, com perda significativa da sua qualidade de vida em termos pessoais, familiares e de facilitação do isolamento social.
NF | Como o diagnóstico precoce pode influenciar o tratamento e o prognóstico da NPF?
JM | Como em qualquer outra patologia médica, o diagnóstico precoce, preferencialmente até em fases assintomáticas de doentes em risco, é fundamental para que os efeitos das alterações terapêuticas dirigidas e da mudança de hábitos e estilo de vida pelo doente tenham o seu maior alcance, evitando a progressão para fases mais graves de neuropatia, possibilitando até a sua reversão completa. O conhecimento é poder. Conseguir um diagnóstico neurofisiológico rápido e seguro de NPF com dados concretos e objetivos, sendo uma área médica onde até aqui o acesso a esse conhecimento era muito limitado, é uma enorme mais-valia. O SUDOSCAN permite isso mesmo e estou convicto de que será um game-changer no diagnóstico e gestão da NPF, pelos profissionais das diversas disciplinas médicas que orientam patologias onde esta possa ocorrer. Aliás, a nível internacional o SUDOSCAN já é um meio complementar de diagnóstico perfeitamente integrado e comum na prática clínica, com variados ganhos em saúde para os doentes. Agora, também em Portugal, podemos beneficiar de forma mais abrangente deste exame cujo acesso está também disponibilizado na rede CUF.